Catastrofização: o hábito mental de prever o pior
13/05/2025
Sabemos que é emocional — mas seguimos tratando como se fosse apenas físico.
Mesmo com todo o discurso sobre saúde mental, seguimos negligenciando o cuidado real. A dor emocional é reconhecida — mas raramente acolhida.
Sabemos que dói, mas insistimos em ignorar. Evitamos a escuta, postergamos o cuidado e chamamos de força o que, na verdade, é medo.
A consequência? Sofrimento crônico travestido de normalidade.
Esse silêncio custa caro.
O paradoxo do emocional invisível
Mariana tem 34 anos e já conhece bem o próprio corpo. Sabe que a azia piora em dias de reunião tensa no trabalho. Que a pele coça quando ela segura o choro. Que a insônia chega sempre depois de uma conversa mal resolvida com a mãe. Já passou por dermatologista, gastroenterologista, endocrinologista — e fez todos os exames possíveis.
Em nenhum momento alguém recomendou psicoterapia. E ela também nunca cogitou.
Mesmo sabendo que “deve ser emocional”.
Esse padrão não é incomum. É regra. Sabemos onde dói — mas se a dor é emocional, agimos como se não existisse. Ou como se devesse se resolver sozinha, com tempo, distração ou algum comprimido para os sintomas.
Vivemos uma contradição coletiva: reconhecemos que boa parte dos nossos problemas têm origem emocional, mas insistimos em tratá-los como se fossem exclusivamente físicos. Essa negação não é inofensiva. Ela custa caro: à nossa saúde, ao sistema médico, à produtividade das empresas e à qualidade das relações humanas.
A dor emocional está gritando — e seguimos tapando os ouvidos.
Por que evitamos tratar a dor emocional com a seriedade que ela exige?
A resposta não é simples — e envolve medo, cultura, falhas estruturais e negação.
Três figuras ilustram esse cenário de negação: quem sofre, quem deveria cuidar e quem lucra com a produtividade.
O paciente que foge da psicoterapia, mesmo sabendo que precisa.
O médico que reconhece a causa emocional, mas não age de forma integrada.
A empresa que sofre com a baixa produtividade emocional dos seus times, mas investe em “palestras de bem-estar”.
1. O paciente que evita o óbvio
Não é falta de informação. Nunca se falou tanto sobre saúde mental, emoções, ansiedade, autoconhecimento. Existem vídeos, livros, influenciadores, podcasts, profissionais disponíveis. O conteúdo está em todo lugar — mas a ação, não.
É mais fácil aceitar um diagnóstico de gastrite do que reconhecer que se vive com raiva crônica. É mais confortável atribuir a insônia ao “cansaço” do que encarar o medo de fracassar, de decepcionar, de ser rejeitado. A psicoterapia exige o que quase ninguém quer encarar: a responsabilidade por si mesmo.
Essa recusa não é racional — é emocional. E profundamente cultural. A maioria das pessoas internalizou a ideia de que “dar conta sozinho” é sinal de força. Que sentir demais é fraqueza. Que procurar ajuda é admitir derrota.
O resultado?
Sofrimento crônico maquiado por medicamentos, diagnósticos imprecisos e tentativas fracassadas de “seguir em frente”.
Se você tem dor de cabeça todo dia, você vai ao neurologista. Se tem dor no estômago, vai ao gastro. Mas se tem dor emocional recorrente… você ignora.
Existe também o autoengano: a ideia de que a terapia é importante — mas “não agora”, “depois do projeto”, “quando der tempo”, “quando eu tiver pior”. Sempre mais tarde. Sempre depois da próxima crise.
Essa postergação tem custo. As emoções reprimidas não desaparecem. Elas se manifestam no corpo, nos relacionamentos, nas decisões equivocadas. O que não é escutado, é somatizado.
A consequência?
Adoecemos sem nomear. Sofremos sem compreender. Vivemos mal, mesmo sabendo o porquê.
Mas o paciente não nega sozinho. A omissão também vem de quem deveria acolher. A resistência ao cuidado emocional não é exclusividade de quem sofre — ela está presente também em quem atende.
2. A resistência médica à integração emocional
A resistência sistêmica à integração emocional
A medicina moderna avançou em diagnósticos, tecnologia e especialização. No entanto, quando o assunto é sofrimento emocional, ainda opera sob uma lógica ultrapassada: a de que mente e corpo são domínios separados — um legado estrutural, não uma falha individual.
Na prática, isso significa que, mesmo quando um médico reconhece que o sintoma tem origem emocional, a conduta costuma permanecer dentro dos limites biomédicos:
- um exame,
- uma prescrição,
- um protocolo.
Você provavelmente já ouviu algo assim em uma consulta:
“Isso deve ser emocional. Tente relaxar.”
Fim da conversa. Sem escuta, sem encaminhamento, sem cuidado.
Não há encaminhamento, escuta aprofundada, nem uma articulação concreta com profissionais da saúde mental. O médico devolve ao paciente a responsabilidade — sem oferecer alternativas reais.
Essa atitude não vem do acaso. Ela é mais sintoma do sistema do que do médico. É produto da formação técnica e fragmentada do modelo biomédico e emocionalmente disfuncional.
Formamos especialistas em corpos — mas ignoramos as dores invisíveis
Os currículos médicos seguem priorizando a anatomia sobre o afeto, o que pode ser mensurado e negligenciando o que precisa ser escutado. Assim, formam-se profissionais capacitados para corrigir disfunções fisiológicas, mas despreparados para lidar com:
- a angústia difusa,
- a dor sem causa anatômica,
- a vulnerabilidade humana que não cabe em exames laboratoriais.
O resultado?
Profissionais treinados para “consertar corpos”, mas pouco preparados para lidar com a complexidade emocional dos seus pacientes — e, muitas vezes, com a própria.
A consequência?
Reconhece-se a origem emocional de um sofrimento — mas segue-se tratando apenas a superfície. Como apagar a fumaça e deixar o fogo aceso.
O paciente emocionalmente aflito é rotulado — e descartado
Em vez de ser acolhido, o paciente é frequentemente reduzido a rótulos como:
“difícil”
“ansioso”
“psicossomático”
E então é descartado como alguém que precisa de algo que “não é da alçada médica”. Para o paciente, isso não é apenas um diagnóstico frustrante. É uma invalidação.
Essa resistência médica tem custos concretos:
Tratamentos ineficazes e recorrentes
Uso excessivo e equivocado de medicamentos
Sobrecarga do sistema de saúde
Um sofrimento que poderia ser acolhido — mas é ignorado
A solução exige ruptura — não apenas boa vontade
Não basta humanizar o atendimento com empatia individual. É preciso reconfigurar a lógica institucional:
O que precisa mudar:
- Reformulação dos currículos médicos, com ênfase em saúde mental
Formação interdisciplinar como eixo, e não anexo
- Equipes integradas que se comuniquem de fato
Encaminhamentos reais, com corresponsabilidade clínica
Escuta ativa, profunda e não performática
E, acima de tudo: coragem para romper com um modelo que já não dá conta do ser humano real.
Ou integramos a saúde emocional ao cuidado, ou seguiremos tratando a dor como ruído.
Reconhecer a dimensão emocional, mas não integrá-la ao cuidado, é como identificar a causa de um incêndio e seguir jogando água só na fumaça.
E se a medicina ainda trata a dor emocional como um anexo, o ambiente corporativo muitas vezes a transforma em obstáculo. A lógica do desempenho não apenas ignora as emoções — ela as transforma em ameaça.
3. O custo corporativo da negação emocional
As empresas dizem se importar com o bem-estar dos funcionários. Promovem semanas da saúde mental, distribuem brindes com frases motivacionais e contratam palestrantes para falar sobre equilíbrio emocional.
Mas, no cotidiano, a mensagem é outra:
“Seja produtivo, mesmo que esteja em colapso.”
Na prática, emoções seguem sendo tratadas como desvio de conduta — não como parte da experiência humana.
Um colaborador ansioso é visto como frágil.
Um gestor esgotado é culpado por “falta de organização”.
Uma pessoa emocionalmente instável vira um risco reputacional.
O resultado: silêncio, mascaramento, adoecimento.
Empresas não querem lidar com emoções — querem que elas sumam sem atrapalhar o desempenho.
Só que elas atrapalham. E ignorá-las custa caro
Segundo a OMS:
Depressão e transtornos de ansiedade causam US$ 1 trilhão de perdas anuais em produtividade global
No Brasil, transtornos mentais já estão entre as principais causas de afastamento do trabalho
As empresas tratam o burnout como um problema individual. Mas ele é, na verdade, sintoma de um sistema mal gerido:
Metas inatingíveis
Liderança tóxica
Sobrecarga crônica
Cultura de competição disfarçada de meritocracia
Mesmo assim, as respostas seguem superficiais:
Contratação de apps de meditação (sem engajamento real)
Eventos pontuais sem continuidade
Canais de escuta que não resultam em mudanças reais
O que falta? Compromisso real com o emocional.
Isso exige:
Políticas internas consistentes
Psicólogos organizacionais acessíveis
Formação emocional de líderes
Redesenho de estruturas de trabalho
Investir em saúde emocional não é filantropia. É estratégia.
Quando o paciente evita, o médico fragmenta e a empresa disfarça, o sofrimento emocional se acumula sem nome — e sem tratamento. O que não é acolhido se transforma em adoecimento silencioso.
E esse silêncio tem um preço.
O preço de continuar negando
Todo mundo já sabe: dor emocional adoece o corpo, esgota a mente, desestrutura relações. Mas seguimos agindo como se saber fosse suficiente.
Não é.
Enquanto tratarmos emoções como um problema secundário — ou pior, como um problema individual — o sofrimento vai se acumular em silêncio.
Pacientes seguirão frustrados. Médicos seguirão limitados. Empresas seguirão adoecendo.
O acúmulo de adiamentos, silenciamentos e intervenções superficiais não some com a dor — apenas a empurra para camadas mais profundas, onde se transforma em sofrimento crônico e silencioso.
O que evitamos hoje não desaparece. Só se transforma em algo mais difícil de enfrentar amanhã.
Negar a dor emocional não nos protege. Nos paralisa.
E essa paralisia tem um custo alto:
Cronificação do sofrimento
Explosão de diagnósticos psiquiátricos
Relações frágeis
Produtividade inconstante
Uma sociedade cada vez mais exausta
A boa notícia?
Esse ciclo pode ser interrompido. Mas não com frases bonitas. Nem com ações simbólicas.
O que precisamos é de:
Comprometimento pessoal com a psicoterapia
Formação médica que integre corpo e mente
Empresas que reconheçam emoções como parte da produtividade
Essas mudanças exigem compromisso real — e urgência. Porque o que deixamos de olhar hoje, inevitavelmente, volta em forma de colapso.
A emoção ignorada hoje é o colapso de amanhã.
É hora de parar de fingir que não sabemos o que está acontecendo.
Negar a dor emocional não é mais uma escolha neutra — é uma forma silenciosa de perpetuar o sofrimento. Já temos informação, consciência e evidência. O que falta agora é responsabilidade. O tempo de adiar passou. O que não for acolhido hoje, será cobrado amanhã — com juros no corpo, na mente e nas relações.
Agora que sabemos — o que vamos fazer com isso?
